Imagem: Ilustração Ígor Cardoso |
EPÍTETOS DA CIDADE
Ígor Cardoso*
De tão inspiradora,
diversos são os epítetos – palavras ou expressões qualificativas – atribuídos,
desde tempos os mais remotos, a nossa Garanhuns.
Escrevendo sobre as
primeiras décadas do século passado, Alfredo Vieira, nosso precioso
memorialista, já dedicava um dos capítulos de seu adorável “Garanhuns do meu
Tempo” aos “apelidos” da cidade, relacionando os seguintes: “Cidade Serrana”,
“Onde o Nordeste Garoa”, “Petrópolis Pernambucana”, “Princesa do Sertão”,
“Suíça do Nordeste”, “Suíça Pernambucana” e “Terra dos Amores-Perfeitos”.
Recordamos, ainda, estes:
“Cidade das Flores”, “Cidade das Sete Colinas”, “Cidade do Clima Maravilhoso”,
“Terra das Colinas Verdejantes” e – o que mais gosto – “Terra de Simoa”.
Particularmente, também costumo me referir à terrinha por “Cidade-Mulher”,
“Cidade-Poesia” e “Pólis Simoense”.
A respeito dos
epítetos locais, guardo uma divertida recordação: há alguns anos, ao servir de
cicerone a um grupo de amigos do trabalho que visitavam Garanhuns, após lhes
explicar, “in loco”, aspectos de nossa história, dividi o grupo, que era de
quase 20 pessoas, em dois, e propus-lhes uma enquete, valendo uma caixa repleta
de brindes alusivos ao passeio.
Uma das perguntas relacionava
cinco títulos da cidade e demandava qual deles não diria respeito a Garanhuns.
Ninguém acertou, e a resposta – “Terra da Garoa” – foi recebida sob protestos. Ao
final, minha explicação de que tal designação aludia, em verdade, a São Paulo
convenceu ainda menos quando, ato contínuo, na trilha sonora da viagem, Dominguinhos
foi, inocentemente, flagrado a entoar os seguintes versos: “Neve caindo / Ai,
meu Deus, que coisa boa! / Suíça Pernambucana / É a Terra da Garoa...” Foi uma
deliciosa algazarra!
Embora ameno, o
tema suscita reflexões. A propósito, devo esse despertar à amiga Ingrid Buhr.
Foi naquela mesma
viagem, quando eu explicava ao grupo, na Praça Tavares Correia, as origens de
nosso cartão-postal por excelência. A ideia partira do então secretário de
Turismo do Estado, o poeta Francisco Bandeira de Mello, que, havendo residido
em Genebra, e inspirado pelo Relógio de Flores local, pretendera assinalar, em
definitivo, a alegada semelhança entre as Suíças – a original e a pernambucana
–, contando, para tanto, com o irrestrito apoio do prefeito Ivo Tinô do Amaral.
Comentávamos,
então, sobre o epíteto “Suíça Pernambucana”, quando a dileta amiga, espontânea
e provocativa, participou-me não acreditar ser necessário a uma cidade como
Garanhuns, tão autêntica, com tanta história e com tanta identidade, apoiar-se
nesse tipo de comparação.
Segundo ela, seria
preferível o recurso a qualquer designação afetiva – “Cidade das Flores”,
“Terra de Simoa”, etc. – que valorizasse a cidade a partir da própria cidade,
buscando nela mesma suas notas distintivas; qualquer qualificação que, enfim,
não a transformasse em reles cópia – sempre um arremedo de algo considerado ideal
ou melhor, muitas vezes por mero servilismo aprendido.
Ingrid tinha razão.
Em realidade, suas reflexões eram a outra face da moeda de algo que já me havia
ocorrido quando, no carnaval de 2009, eu visitara Veneza, na Itália, e
procurara verificar as semelhanças que, supostamente, autorizariam nosso Recife
a ser amplamente lembrado como a “Veneza Brasileira” ou a “Veneza
Pernambucana”.
Não que os cursos
d’água e as pontes, e a própria folia de Momo, festa de rua de vastas
proporções, deixassem de militar a favor do paralelo, porém a Veneza original –
consoante me foi explicado – emergira em um diminuto arquipélago inserido em
uma lagoa, razão pela qual a circulação e as comunicações entre seus
tradicionais bairros, os “sestieri” – sítio histórico a remanescer praticamente
intacto desde os tempos das Grandes Navegações –, dependeriam das vias
aquáticas, a exemplo do “Gran Canale”, que seria considerado a “rua mais bonita
do mundo”.
A Capital
pernambucana, por outro lado, surgira no continente, como porto de Olinda, procurando
espraiar-se, ao tempo dos Holandeses, pelas ilhas fluviais e pelas porções de
terra entremeadas pelos caudalosos Beberibe e Capibaribe – que ali, nos termos
de nosso bem-humorado bairrismo, unir-se-iam “para formar o Atlântico”.
Apreciados, assim,
de terra firme, nossos rios recifenses não são – pelo menos, não até a derradeira
implantação, algum dia, do projeto de navegabilidade do Capibaribe – “ruas
aquáticas”, como as italianas, e, a bem da verdade, mesmo que os canais
nassovianos de Pieter Post houvessem resistido ao tempo, é provável que o
Recife estivesse muito mais identificado, pelas condições geográficas, com
Amsterdã que com Veneza.
Já naquela viagem
ao Vêneto, eu me indagava acerca desses epítetos que estabelecem paralelos com
outros lugares do mundo: “Veneza Brasileira”, “Paris da América do Sul” (Buenos
Aires), “Suíça Pernambucana” (Garanhuns). Àquela época, todavia, apenas chegava
para me perguntar sobre como certas cidades e países evoluíam para verdadeiros
“conceitos”, a ponto de serem recuperados assim, tão automática e prolificamente,
nos quatro cantos do mundo. Ainda não havia atentado para o outro lado da
história.
O comentário de
Ingrid me tocou profundamente. Sobretudo quando, algum tempo depois, os mesmos
representantes do Poder Público Municipal que se haviam elegido com a bandeira
de fortalecer, enquanto produto turístico, o slogan ímpar de “Cidade das
Flores”, declararam à grande imprensa que, com seu “Natal Luz”, Garanhuns pretendia
se firmar como a “Gramado do Nordeste”.
Ao que parece, a
Gramado original, destino turístico de montanha nacionalmente conhecido, vocacionado
à condição de “conceito”, mas um “conceito” nada simpático às eventuais “cópias”,
questionaria, formalmente, o nome da belíssima celebração garanhuense. Desde
então, o “Natal Luz” nordestino cedeu passo à “Magia do Natal”, e Garanhuns se
viu compelida a buscar em si mesma seus referenciais.
Embora ameno, o
tema dos epítetos suscita reflexões.
Desde que iniciei as
pesquisas sobre o passado local, a invocação de “Cidade das Sete Colinas” é
outra que tem me chamado especial atenção. Sempre soube que se tratava de uma
expressão, assim como “Natal Luz”, tomada por flagrante empréstimo: uma antonomásia
tradicionalmente atribuída a Roma, que teria sido fundada por sobre as colinas Aventino,
Capitólio, Célio, Esquilino, Palatino, Quirinal e Viminal.
Quase um “lugar
comum”, na verdade: basta ver que a Wikipédia em língua inglesa guarda uma lista
de cerca de cem cidades ao redor do mundo que se “apropriaram” do consolidado
título de “Seven Hills”, entre as quais Lisboa, havendo, também, quem arvore o
epíteto para Olinda.
É curioso porque, a
partir do mote das “Sete Colinas”, o professor e premiado escritor garanhuense
Mário Rodrigues escreveu, na juventude, um interessante romance policial,
intitulado “A Suíça Pernambucana”, cujo enredo, que faz lembrar as narrativas
de Dan Brown, a envolver misteriosos assassinatos em cada uma de nossas colinas,
retoma, com inteligência, a questão das múltiplas cidades que aludem à
antonomásia romana.
A geografia local
registra os nomes das sete colinas nas quais Garanhuns teria sido fundada –
Antas, Columinho, Ipiranga, Magano, Monte Sinai, Quilombo e Triunfo –, porém a
história local põe em xeque esse “mito fundador”, assim como o próprio mito
fundador de Roma, forjado para “dignificar” a Capital do vigoroso Império,
costuma ser questionado.
Não, Garanhuns não
surgiu “à europeia”, qual Roma por sobre Sete Colinas, senão na encosta da
colina do Quilombo – sim, do Quilombo –, em cujo cimo, aliás, assim como no
Magano e nos arredores, existiam núcleos, ou “mocambos”, do célebre Quilombo
dos Palmares. Foi em uma das curvas de nível da colina do Quilombo que alvoreceu
a Fazenda do Garcia, da fundadora Simoa Gomes de Azevedo, neta do famigerado
destruidor dos Palmares, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho.
Embora depare
origens profundamente relacionadas com o movimento de resistência negra, ainda
pulsante em comunidades como Castainho, não surpreende, pois, que a cidade,
enquanto produto dos vencedores brancos, tenha procurado desconstituir esse
passado tido por “desinteressante” ou até “vergonhoso”, recorrendo a mitos civilizatórios
e eurocêntricos como o das “Sete Colinas”. E isso não é algo novo em nossa
história: os jornais garanhuenses do século passado estão prenhes de
referências ao lugar como uma “urbs culta e civilizada, leader no hinterland
pernambucano”, se comparada às do entorno, às “semibárbaras do Alto Sertão”.
A geografia local
registra os nomes das sete colinas pelas quais Garanhuns se espraiou, mas não
menciona os das novas, para onde continua a se dirigir o confuso crescimento
urbano. Da colina “esquecida”, por exemplo, por sobre a qual jaz o bairro
popular Dom Hélder Câmara, antiga Cohab, qual de nós sabe o nome?
Não há nada de
errado com os epítetos, fenômeno quase sentimental e poético, de vinculação com
a paisagem, com o cenário de nossas existências. Pelo contrário: eles evocam
imagens e conformam identidades. Por vezes, não obstante, escondem muito mais
do que revelam, e é preciso estar a atento.
Que nossos caminhos
a esse respeito sejam, cada vez mais, o da vocação para os “conceitos” que para
as “cópias”, e que nossos “conceitos” guardem relação com a multifacetada e riquíssima
realidade de nossa trajetória enquanto comunidade.
*Ígor Cardoso é escritor da Academia de Letras e pesquisador
do Instituto Histórico, Geográfico e Cultural de Garanhuns
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