Ígor Cardoso*
Quando a “Vila
Dilênia”, o inesquecível “Castelinho” de Ruber van der Linden, foi brutalmente
demolido, em novembro de 1996, eu contava nove anos de idade e residia em
Sertânia.
Naquela época, nós costumávamos
ir de quinze em quinze dias a Garanhuns, cidade de nossas raízes, mas nem seria
necessário esperar até a próxima viagem para que o duríssimo golpe à memória e
ao patrimônio da “Terra de Simoa” ressoasse em nossa casa, a quase 150km de distância.
Em 1996, a internet
ainda engatinhava, porém lembro do veemente protesto de Ronildo Maia Leite, em editorial
para o “Jornal do Commercio”, e dos comentários generalizados de revolta de
diversos interlocutores conterrâneos: “Botaram o Castelinho abaixo na calada da
noite, após haverem garantido que o preservariam! Um absurdo, um crime! Ninguém
jamais se conformará!”
Em recente conversa
sobre o assunto, meus pais se recordaram de que, certa feita, nós chegamos a frequentá-lo,
ao tempo em que a charmosa residência do saudoso cientista passara a abrigar um
bar e/ou uma pizzaria, constando, mesmo, que haveria sido feito um registro
fotográfico dessa visita.
Como as lembranças
que conservo a respeito são rarefeitas, logo após essa valiosa indicação,
investi uma noite inteira em revirar os álbuns familiares, infelizmente ainda
sem êxito. Em todo caso, guardo da construção uma isolada impressão
relativamente vívida, obtida da janela do carro.
Estávamos a caminho
de Heliópolis, quando algum familiar mencionou a palavra “Castelinho”, e meu
olhar infantil, curioso, automaticamente correu em demanda do entorno, dando de
cara com aquela cena impressionante, com aquela edificação ímpar, envolta por
copadas e frondosas árvores, e que até parecia haver sido extraída de algum
conto de fadas.
Nunca esquecerei...
Comentava-se,
então, do imperdoável abandono ao qual andava relegado um patrimônio como
aquele, mas a conversa já não me entretinha. Eu o fitava, entre admirado e
inconformado, desejoso de poder inverter a ordem das coisas; de me aproximar,
em vez de me distanciar; de que o tempo – transfigurado no veículo em movimento
– estancasse, ou de que, pelo menos, amenizasse sua inexorável marcha...
Garanhuns, de fato,
jamais se conformaria com a perda do Castelinho, sacrificado em prol da especulação
imobiliária, para dar lugar a um “produtivo” terreno baldio. Volta e meia, o
assunto ressurge nas rodas de conversa e nas redes sociais, deflagrando uma
torrente de lírica nostalgia e de dolorosas lamentações.
Tristes dos que
passam por este plano deixando um rastro de destruição...
O “trauma” social foi,
e é, tamanho que me faz lembrar o arquetípico caso do Megaípe, o engenho
colonial pernambucano posto abaixo da noite para o dia, nas primeiras décadas
do século passado, e cuja perda, de tão pesarosa, acabaria ensejando, sob os
influxos de Gilberto Freyre e de Rodrigo Mello Franco de Andrade, a criação do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN) – instituição
que, também, muito deve a nosso Luís Jardim, um de seus primeiros
colaboradores.
É interessante
porque, mesmo tendo dele lembranças rarefeitas, sinto imensas saudades do
Castelinho. E não deixo de lamentar, profundamente, que as gerações que nos
antecederam não o tenham conservado, não tenham lutado por ele com unhas e
dentes, permitindo, aos pósteros, admirá-lo, conhecê-lo, perscrutá-lo.
Por outro lado, procuro
compreender-lhes as razões, porquanto, desde que passei a me dedicar, com
afinco, ao estudo da História de Garanhuns, em 2010, tenho testemunhado,
contrafeito e impotente, a perda de diversos outros Castelinhos.
Recentemente, fomos
privados, em um conveniente feriadão, do Casarão dos Lundgren, o velho “Casarão
do Papafigo” de minha infância, abatido após uma lenta e progressiva “morte
anunciada”, que principiou com a erradicação – e pretextos, para tanto, não
faltaram – dos seculares eucaliptos que o adornavam, cenário de tanta história,
de tanta vida...
Deixar para lá, ou
transferir a responsabilidade para o Poder Público ou para terceiros, é cômodo –
e a gente sofre menos.
Mas nem tudo são
espinhos, lágrimas e revolta nesta caminhada consagrada à preservação da
memória. Também tenho aprendido que, aos dias de baixos, sucedem os de altos. E
a prova disso é o último gesto – monumental gesto! – desse verdadeiro
“patrimônio imaterial” garanhuense que é dr. Ivan Rodrigues.
Eu nem sabia que dr.
Ivan era filho do célebre “Zé Batatinha”, de quem tanto ouvira falar quando
residi em Arcoverde, e herdeiro, pela via materna, do arrojo dos Dourado – neto
de Ernesto e primo de Euclides e Souto Dourado –, quando comecei a admirá-lo.
Tampouco tinha ciência de que ele era uma liderança histórica socialista,
havendo até sido preso quando do Golpe de 1964, em pleno Palácio do Campo das
Princesas, juntamente com o governador Miguel Arraes.
O que me fez reverenciar
dr. Ivan, em realidade, foi seu “disco rígido mental” assombroso e privilegiado,
tinindo aos 90 anos recém-completados – idade que, não fosse pelo vigor de sua
memória, em nada se compatibilizaria com a juventude de sua personalidade. Dr. Ivan
é um repositório raro e precioso do passado, e – como Deus é muito bom mesmo! –
dr. Ivan é, também, o proprietário do belíssimo imóvel à Praça Souto Filho, nº.
71, com o qual “paquero” desde que me entendo por gente.
Se me fosse perguntado,
não conseguiria precisar de qual das áreas verdes de Garanhuns gosto mais: cada
uma é tão apaixonante e singela, traz-me lembranças tão ímpares e queridas. A
“Praça da Fonte Luminosa”, no entanto, tem algo de arrebatador. Frequento-a
desde menino, dada a proximidade com a casa de meus avós, na Av. Caruaru, e,
sempre que posso, esparramo-me em um de seus bancos ou gramados, ensaiando ler
algum livro, enquanto meus olhos teimam em se desviar para a “Casinha de dr.
Ivan”.
Por conta da
insensibilidade de uns poucos, tenho lembranças rarefeitas do Castelinho de
Ruber van der Linden, mas, por generosa obra do querido amigo, em relação ao “Castelinho”
de Ivan Rodrigues, nunca precisei ter de buscar uma fotografia em álbuns
adormecidos. A casinha sempre esteve lá – e, doravante, sempre estará.
Mês passado, perambulava
por aquele adorável jardim público, quando avistei, em seu “Castelinho”, a um
exultante dr. Ivan. Fui imediatamente ao seu encontro, e ele me disse:
Ígor, tenho uma notícia de que você
vai gostar! Você não sabe o que vim fazer hoje, em Garanhuns! Vim garantir a
preservação desta casa! Pensei muito e, sabe, a gente se lamenta tanto da
destruição do patrimônio de nossa cidade, e esta casa é sempre tão admirada
pelos passantes e visitantes, além do que representa para mim e para minha
família, que resolvi fazer algo a respeito. Pelo menos esta será conservada!
Estou, justamente, esperando meu filho, para irmos assinar os papeis!
Vibramos, eu e ele,
em uníssono!
Nunca esquecerei...
Felizes dos que
passam por este plano deixando um legado de engrandecimento!
Por estes dias, dr.
Ivan fez publicar um belíssimo artigo nos blogs e grupos de Garanhuns, que já
salvei em meus registros, sobre seu nobre ato – testemunho de amor à terra
natal que, mais de uma vez, tem-me levado às lágrimas. Recomendo a todos a
leitura, que é revigoradora. Ali, o amigo dá a conhecer as razões de sua
decisão e o entusiasmo com que a família a recebeu.
Insatisfeito, em
seu depoimento, dr. Ivan ainda revela algo surpreendente: o fato de haver sido
ele o serelepe autor da neve artificial, resultado do uso de sabão em pó, que
sempre me chamou atenção na Fonte Luminosa, quando por ali passava em dias de
Festival de Inverno. “Arte” digna – agora vejo – do “jovem presepeiro” que ele
sempre será...
Meu caro dr. Ivan,
Garanhuns o agradece pela sua magnanimidade. Nossa paisagem, tão violentada,
é-lhe e sempre lhe será grata. E, pode estar certo, as gerações futuras, ao
admirarem-na, saberão que a “Casinha de dr. Ivan”, o “Castelinho da Praça da
Fonte”, foi um presente provido aos de ontem, aos de hoje e aos de amanhã por
um benfeitor de nossa terra, por um baluarte de nossa memória.
Ah, e, por favor,
continue a “fazer arte” na “Cidade das Flores” por muitas primaveras mais!
*Ígor Cardoso é escritor da Academia de Letras e pesquisador
do Instituto Histórico, Geográfico e Cultural de Garanhuns.
1 Comentários
Meu caro Ígor: Estou por aqui, ainda recuperando o fôlego que perdi e - confesso - o susto que tomei ao ler seu comentário. Você, de forma brilhante, busca sua infância como ponto de partida, vai a Arcoverde em sua juventude, recolhe suas reflexões nos bancos da "pracinha", relembra lutas políticas de um obstinado, levanta questões históricas referenciadas pela apatia de nossa terra em face da destruição das coisas belas e, por fim, realça como verdadeira consagração o gesto de minha família para conservação da "casinha de Dr.Ivan", sito à Praça Souto Filho nº 71, em nossa querida Garanhuns. Confesso, meu querido amigo, que o nosso gesto foi movido por razões familiares, apenas emolduradas pelos maus exemplos que são dados - fastidiosamente - no trato de coisas lindas da nossa terra. Nunca imaginei essa maravilhosa, mágica e expontânea recepção à nossa iniciativa e tenho o direito de me sentir feliz e orgulhoso diante dela. Você é um dos responsáveis por esta reação que esses amigos oferecem. Estou recompensado. Grande abraço
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