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Acho que não é muito normal escrever o release do próprio disco, né?
O natural é que essa apresentação seja feita por um crítico musical, um músico ou um escritor. Mas, dessa vez, eu mesmo queria contar as histórias por trás das canções de “Telemática”, o quarto álbum que lanço na carreira solo, que começou com o EP Um só (2004), e seguiu com os álbuns Simulacro (2007) e Moto contínuo (2011).
Em geral, primeiro escrevo a letra em forma de poema, depois vem a música. E como sou péssimo instrumentista, já com a memória um pouco avariada, vou compondo e gravando tudo no computador.
Na pré-produção desse disco, gravei todos os instrumentos, contando claro, com a ajuda da tecnologia para deixar as coisas mais claras para quem veio depois. E quem veio depois? Os meus amigos músicos. Esses caras foram dando ideias, gravando novos arranjos para as músicas e até me incentivando a aproveitar minhas gravações toscas. Por isso, nas músicas de Telemática sempre tem algum instrumento tocado por mim. Gravei a maior parte desse disco na minha casa, e o que tenho é um quartinho minúsculo, com um equipamento de som modesto, mas que quebra um galho danado.
Gosto de trabalhar desse jeito e só fui para um estúdio profissional quando precisei de uma turma com mais preparo e equipamentos do que eu. O resultado dessa bem-vinda colaboração coletiva você confere neste álbum.
Agora, vamos às músicas de Telemática:
"Arquitetura de vertigem" foi composta em 2010. A frase "Recife alcança um céu de concreto armado…" me veio à mente quando percebi que, do prédio para onde eu tinha acabado de me mudar, dava para ver construções semelhantes brotando em outros bairros. Depois, Rodrigo Sanches e Felipe S. (Mombojó) gravaram bateria e guitarra solo. O texto que abre a faixa é do jornalista e escritor Otto Lara Resende e foi extraído de uma entrevista que ele deu nos anos 70, quando já se falava da verticalização das cidades. O clipe, que recebeu ótimas críticas, foi selecionado para o Festival Internacional de Videoclipes de Paris, em 2014.
"Choque pesadelo" nasceu de um papo com o blogueiro e parceiro dos tempos de MTV, PC Siqueira, que é um fenômeno de views e likes nas redes sociais com seus vídeos. Fiquei pensando em como a vida dele se dividia entre o real e o virtual. Chiquinho (Mombojó) gravou um solo de teclado arrasador. Quando eu soube que Ilhan Ersain (Wax Poetics) estava em turnê pelo Brasil, arrastei o cara pro estúdio e ele gravou o sax que você ouve no fim da música.
Quando comecei a trabalhar em "Panorama", eu tinha apenas o refrão, que lembra uma pegada, vamos dizer assim, mais Jovem Guarda. Deixei de lado e comecei a compor outra coisa, que acabou virando a primeira parte da música. A letra veio depois, inspirada nas canções de Erasmo Carlos. Panorama foi lançada como single e ganhou um clipe em formato vídeoletra colaborativo, aberto na internet, com participação dos fãs.
O que eu mais curto em "Memória celeste" é o beat eletrônico. Parece que foi tocada por um baterista mesmo e não programada no computador. Jorge Du Peixe (Nação Zumbi) já apareceu no estúdio com a letra pronta e sua voz de trovão. O cara ainda deu ideias para o arranjo geral e gravou uma escaleta. Marcelo Machado (Mombojó) gravou a guitarra e Yuri Queiroga contribuiu com o baixo.
"O céu de Brasília" tem o baixo de Felipe S., que amarra e dá todo o balanço da canção. Fui fazer um show por lá, acordei cedo e saí para andar pelo jardim do hotel. Olhei para cima e constatei que aquele era o céu mais bonito que eu já tinha visto.
"Cores novas" é uma parceria com a cantora Cyz e o guitarrista André Édipo. Ele chegou com a música, eu tinha a letra, e ela colocou a melodia. Criamos uma espécie de bolero combinando com o poema. Essa faixa tem a participação de Luzia Lucena e Sofia Freire, duas jovens cantoras do Recife.
Um dia a cantora e atriz Karine Carvalho me mostrou um pedaço de letra e pediu que eu completasse. Acabei compondo a música também."Outra coisa" só não tinha nome ainda. Eu mandava as várias versões e Karine sempre dizia: "se liga que isso é outra coisa", e assim a canção foi batizada. Quando fomos gravar para valer, achei que a "voz guia", que eu havia registrado em casa há anos, tinha ficado com muito mais emoção, e decidi deixá-la. Mais vale uma boa interpretação do que todos os recursos tecnológicos disponíveis.
"QTK 63 Kaiowa" é uma música instrumental que foi composta por mim e meu irmão, Bruno Ximarú. Apesar da insistência dele, nunca achei que devia colocar letra, soava mais como trilha de filme.Convidei Rodrigo Lemos e Diego Plaça (A Banda Mais Bonita da Cidade) para fazerem um coro como se fosse um canto meio indígena, meio gregoriano, e Lucas dos Prazeres gravou as percussões, que segundo ele, remetem aos barulhos da mata e à forma mais tribal de composição musical.
"Telemática" é a faixa que dá nome ao disco e surgiu do texto "A fábrica", do filósofo tcheco Vilém Flusser. Fala da relação do homem com a máquina, das fábricas com o homem. Lembro que tinha comentado sobre o disco novo com HD Mabuse, um dos mentores de Chico Science, e o cara me mandou esse texto, que acabou me ajudando um bocado na concepção do álbum inteiro. Outro que colaborou com essa faixa, e também com o disco, foi o pesquisador de engenharia de software e referência brasileira no assunto Sílvio Meira.
"Em "Subintenções", criei a base rítmica da canção, usando a bateria de um jeito diferente, inspirado na performance do cara do Can - banda de rock experimental alemã dos anos 70. Pedi a Homero Basílio, da Orquestra Sinfônica de Pernambuco, para tocar usando apenas os tons e a caixa. Surgiu um beat pesado e contínuo, combinando com a guitarra mais balançada, na proposta do refrão: "Por que você não vem dançar comigo…". PJ, do Jota Quest, mandou muito bem no slap (um estilo de tocar baixo).
"Realinhar" foi lançada primeiro no mais recente disco do Jota Quest, Funky Funky Boom Boom, e é uma parceria minha com os caras. Resolvi lançar também a minha versão por lembrar que, na época da Tropicália, era natural existirem várias interpretações para uma mesma música, como aconteceu com a clássica "Baby".
"Olho de Thundera" é a música que foi composta de forma mais rápida e também mais demorada. Explico: a música ficou pronta em meia hora, mas levou seis anos para ser, de fato, terminada. Numa jam session com minha banda, Yuri Queiroga puxou o riff de guitarra e logo vieram a letra e a melodia. Talvez por ter nascido prematuramente, ela ficou guardada por todos esses anos. Na gravação das bases desse disco, Yuri iniciou o mesmo riff, demos um tempo na faixa que estávamos gravando, e, como antes, em 30 minutos a música estava pronta.
A faixa mais curiosa desse disco é "Frevo Morgado", feita por mim e André Édipo para disputar um concurso de frevo. Encontrei, depois de um tempo, um dos organizadores e comentei que a composição era boa, mas não tinha ficado entre as finalistas. Quando falei o nome da música, fui interrompido de imediato: "China, como é que tu inscreves uma música com esse nome num concurso de frevo? A galera quer frevos pra cima e não frevos morgados". Se para um concurso não era um título adequado, para um disco ficou ideal. As participações de Vitor Araújo, Vinícius Sarmento, Públius e Deco Trombone só deixaram esse frevo mais bonito.
E chegamos ao final das 13 faixas que compõem Telemática, meu quarto álbum solo, feito com recursos próprios e muito esforço. Ser artista independente no Brasil só tem graça se for assim, com suor, perseverança e paciência para aproveitar tudo no tempo certo.
China
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