Na edição 261 do Jornal de Arcoverde e nesta coluna
(2011) http://bit.ly/qFsDr8 , foram citados
todos os 9 filhos do casal Antônio de Albuquerque Cavalcanti (Capitão Budá) e sua
esposa Marcolina Dorothéa Pacheco do Couto. Agora retomo o assunto para focar no
tempo, os anos 1915 a 1920 (quase um século) e apresentar fatos pitorescos
relacionados às irmãs do Cardeal Arcoverde.
Quem eram elas?
Tereza Arcoverde de Albuquerque
Cavalcanti nasceu em10-07-1853, casou com o desembargador Francisco Domingos
Ribeiro Viana. Ana Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, nascida em 7-6-1858,
casou com seu tio materno Tte. Cel. Veríssimo José do Couto . Até 1945 vivia
num convento no Rio. Maria Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti nasceu em
13-12-1864 e faleceu em 21-7-1942. Casou com o cap. Antonio José Pires, já
viúvo, con-senhor do engenho Bom Sucesso, em Gameleira. (Gente de Pernambuco, vol. 3 – 2000. Orlando Cavalcanti, pág. 66).
Nessa época atuou na igreja
matriz da então Rio Branco o vigário João Ignácio de Albuquerque que foi pároco
na matriz de Buíque até março de 1915 (http://bit.ly/17e29i6)
. E o município de Buíque lhe prestou uma homenagem com a nomeação da Escola
Vigário João Inácio http://bit.ly/11hP9Dt e de uma praça.
Nas memórias do senador Victorino
Freire é que encontramos os personagens que envolvem o Cardeal, suas irmãs e o
vigário João Inácio. Victorino, filho de Victorino José Freire e Anna de Britto
Freire, nasceu 28-11-1908, na fazenda Laje da Raposa, Pedra-PE, passou sua
infância, até 1917, em Rio Branco (hoje Arcoverde) e faleceu no dia 27-8-1977.
Do seu livro A Laje da Raposa. Memórias.
Victorino Freire, 1978, é que apresentamos o texto a seguir.
Por ocasião da nomeação de
Joaquim Arcoverde para o cardinalato, sua visita ao Recife, já então como
Cardeal, foi uma festa. O assunto em voga era a presença do Cardeal Arcoverde
em sua terra natal, e diversas pessoas de vários lugares do estado foram para a
capital render-lhe homenagens.
Suas irmãs, como não poderia
deixar de ser, também foram vê-lo no Recife, ocorrendo ai um incidente com uma
delas que é bem uma mostra do sangue quente da família Arcoverde.
Como o fato do dia era a estada do
Cardeal em Pernambuco, as pessoas quando se encontravam perguntavam umas às
outras se já haviam ido visitá-lo.
Certo dia, vinha Dona Maria num
bonde, sentada ao lado de um passageiro que, inadvertidamente, tinha dois
botões da braguilha abertos. Ignorando que sua vizinha de banco era irmã do
Cardeal, e querendo puxar conversa o sujeito perguntou:
— Então, a senhora já viu o
Cardeal?
A velha, sem nem mesmo olhar para
o lado, interpretando a pergunta como uma grosseira intimidade, respondeu-lhe
secamente:
— Não vi, não quero ver, e é
melhor que o senhor se abotoe!
Dona Maria, Dona Kalu e Dona
Tereza, que moravam no interior andavam sempre juntas, em companhia de uma
prima, Dona Branca. Eram figuras conhecidas devido à família a que pertenciam e
muito especialmente por serem irmãs do Cardeal. As velhas eram respeitadas e temidas
pelo povo do município, em razão do gênio violento e explosivo que as
caracterizava.
Todos os assuntos da redondeza,
desde os casos de família até problemas políticos locais, eram manipulados
pelas três velhas que metiam e davam palpite em tudo.
Por serem muito religiosas,
promoviam quermesses, arraiais e procissões, e até mesmo as horas em que as
missas seriam rezadas eram determinadas por elas. Sob o comando das quatro, já
que Dona Branca também dava seus palpites, a vida corria sem maiores problemas,
até um padre da cidade de Buíque veio para Olho-d'Água dos Bredos a fim de
assumir a paróquia interinamente, em virtude de o padre titular haver adoecido.
O Padre João Inácio, o interino,
era um pároco de voz fanhosa, muito autoritário, renitente mal-educado, e muito
pouco disposto a permitir que qualquer pessoa se intrometesse em seus deveres
paroquiais. Como as velhas se consideravam as donas de todos os movimentos religiosos
da cidade, o choque não demorou a acontecer.
Quando o Padre João Inácio
assumiu, a igreja estava em obras e todas as suas imagens, alfaias, castiçais e
objetos diversos tinham sido levados para um depósito, onde ficaram guardados.
Concluídas as obras colocou-se tudo outra vez na igreja. As velhas irmãs do
cardeal tinham dado de presente para a imagem de São Sebastião um colar de ouro
de meio metro de comprimento, que na confusão da mudança acabou tendo paradeiro
desconhecido.
Dando pela falta do colar, as
velhas se enfureceram e passaram a por em dúvida a honorabilidade do padre,
culpando-o pelo desaparecimento do colar. A reação do padre não se fez por
esperar: no primeiro sermão dirigindo-se aos fiéis, o padre atacou:
— Anda por aí uma conversinha de
ponta de rua, inventada por certas pessoas, dizendo que desapareceu um colar de
ouro da imagem de São Sebastião durante as obras da igreja. Ora, quando eu
cheguei aqui São Sebastião não tinha nem ao menos uma corda para se enforcar,
quanto mais um colar de ouro!
Foi a declaração de guerra às
velhas! Pela violência e determinação do padre de enfrentá-las, sentiram logo
que iriam ter sérios problemas com ele. A primeira coisa a fazer era tentar
remover o padre de Olho d'Água dos Bredos. Para tanto, fizeram uma carta ao
Cardeal relatando os termos do sermão, insinuando que havia um padre louco na
paróquia.
Em resposta, o Cardeal mandou uma
carta ao padre repreendendo-o severamente e ameaçando removê-lo. As velhas
espalharam pela cidade a notícia da carta do Cardeal, e o padre não teve outro
remédio a não ser esperar o momento da desforra, o que não demorou a acontecer,
quando das festas do mês de maio.
Todos os anos, em maio, mês
dedicado à Virgem Maria, as senhoras das famílias tradicionais da cidade
promoviam festas e quermesses, sob a orientação das velhas, enfeitando as
imagens com flores e iluminando a igreja com velas e candeeiros de carbureto.
Cada dia do mês era reservado a uma família determinada, que ficava responsável
pela organização das homenagens a Nossa Senhora.
Do lado de fora da igreja ficavam
as barraquinhas com comidas típicas, diversões e pequenos jogos, cuja renda
revertia em favor da paróquia. Havia na festa um jogo que consistia numa
pequena roleta, provida de vários números correspondentes a diversos animais,
chamado caipira.
Certo dia, entrando na igreja, o
Padre João Inácio viu um neto da velha Kalu jogando caipira. Ao invés de chamar
a atenção do garoto, o que seria normal, pois o jogo era vedado aos menores, o
padre observou a cena e entrou silenciosamente na igreja.
Na hora da missa, durante o
sermão, o padre dirigiu-se à velha perguntando-lhe:
— Dona Kalu, como é que a senhora
permite que seu neto, de nove anos apenas, que ainda nem ao menos persignar-se
sabe, fique por aí jogando no burro, no porco, no cavalo, e em outros animais,
em vez de estar estudando? Por que a senhora não faz uma carta ao Cardeal contando
isso também?
A velha respondeu em altos
brados, e começou aí uma discussão. Mas havia chegado a vez do padre...
Desta feita foi o próprio pároco
quem escreveu ao Cardeal contando o fato. O Cardeal fez uma carta enérgica às
velhas que resolveram tomar satisfações
com o padre. Dona Ana, no entanto, a mais serena e equilibrada, reuniu as irmãs
e, com medo de fazer a situação se agravar mais ainda, deu o caso por
encerrado.
Um belo dia, já muito velha,
faleceu Dona Kalu. O que foi motivo de tristeza para as demais irmãs foi razão
de alegria para o Padre João Inácio. Pelo menos era uma irmã do Cardeal a menos
para criar-lhe problemas.
O enterro de Kalu deveria ser às
10 horas da manhã, no cemitério ao lado da igreja, mas como o calor estava muito
forte, resolveram transferí-lo para as quatro horas da tarde. Entretanto, todos
os serviços funerários foram realizados pela manhã, tendo o próprio Padre João
Inácio rezado a missa de corpo presente.
Pouco antes da hora do
sepultamento, Dona Belmira resolveu mandar chamar o Padre Inácio para benzer
novamente Dona Kalu. O padre indignado recusou-se, alegando que Dona Kalu já
estava benta desde cedo e, além do mais, ela ficasse despreocupada, pois sendo
Dona Kalu irmã do Cardeal iria tranquilamente para o céu, com tripa e tudo!
Dona Belmira danou-se e enviou,
incontinenti, carta ao cardeal onde dizia:
“Joaquim, como você sabe, Kalu
morreu. O Padre João Inácio celebrou a missa de corpo presente, mas estava com
um semblante tão alegre que nossa impressão é que ele encomendou Kalu mal, e
assim seria bom que você a encomendasse diretamente daí, para nossa
tranquilidade.”
Se dependesse do Padre João
Inácio, Dona Kalu seria encomendada diretamente para o inferno...
Nas novenas de maio, depois das
ladainhas à Nossa Senhora, havia um momento em que as pessoas levavam os seus
oferecimentos aos santos. Dedicavam Padre-Nossos, Ave-Marias e Salve-Rainhas e
faziam os seus pedidos, englobando todos os seus desejos e problemas, o que
tornava suas orações muito peculiares.
Dona Belmira criava uma menina,
chamada Agda, que ainda não tinha quatorze anos feitos e andava de namoro com
um moleque cujo nome era Ruba. Cada vez que Agda era encontrada com Ruba, a
palmatória funcionava. Mas, apesar dos castigos e punições, o namoro continuava.
Dona Belmira resolveu então apelar aos seus santos, para ver se eles a ajudavam
a resolver o problema, com a seguinte oração:
”Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria
em intenção de Nossa Senhora do Livramento, para que ilumine Joaquim – o
Cardeal – no seu sagrado ministério; um Padre-Nosso, uma Ave-Maria e uma
Salve-Rainha em intenção das almas aflitas do purgatório e de nossos parentes,
de quatrocentos anos para cá, que mataram em defesa própria, de alguém, ou sem
qualquer motivo; um Padre-Nosso e uma Ave-Maria em intenção do mártir São
Sebastião, para que nos livre da peste, fome, guerra, morte repentina, dentada
de lacrau, coice de égua parida, chifrada de novilho marruá e que Agda deixe de
namorar Ruba, o que eu duvidô-ô-ô...”
A quem perguntava por que motivo
duvidava do santo, Dona Belmira explicava que já vinha alertando-o para o fato
há muito tempo, mas o santo não agia!... .»
Mais
artigos desta coluna: http://bit.ly/ysUcSY.
Pintura
de José Ferraz de Almeida Junior, de 1897, do então arcebispo de São Sebastião
do Rio de Janeiro. http://bit.ly/16shs2L.
Dom Joaquim Arcoverde
de Albuquerque Cavalcanti, mais conhecido como Cardeal Arcoverde (Cimbres, 17
de janeiro de 1850 — Rio de Janeiro, 18 de abril de 1930). No dia 11 de
dezembro de 1905 tornou-se o primeiro cardeal do Brasil e da América Latina. No
ano seguinte esteve em Recife onde recebeu intensa acolhida.
Vigário João Ignácio
de Albuquerque, primeiro prefeito republicano de Buíque 1892 a 1895 (e também
de1901 a 1904). No livro «Infância» de Graciliano Ramos: “Padre João Inácio não
sabia falar conosco, sorrir, brincar — e as nossas almas se fecharam para ele.
Em Padre João Inácio, homem de ações admiráveis, só percebíamos dureza."
Texto e fotos: Pedro Salviano
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