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Caleidoscópio - Educação e Cinismo.


Tomei uma decisão que mudará radicalmente a minha imagem de professor. Não quero mais o reconhecimento por (supostas) virtudes intelectuais. Não quero apoios institucionais para pesquisas culturais, históricas ou científicas de qualquer ordem. Não quero trafegar por corredores escolares com a bolsa abarrotada de artigos e livros, especialmente aqueles há muito escritos por autores clássicos. Não quero comunicar aos alunos que varei madrugadas revendo conceitos, testando teorias, fazendo anotações, levantando questionamentos críticos, escrevendo trabalhos acadêmicos.

Sequer me darei à tarefa de fazer cuidadosos planejamentos de aulas, pensar estratégias de ensino, bolar métodos de aprendizagem, sugerir procedimentos que gerem conhecimentos qualificados. Tudo isto é enfadonho, cansativo e fora de moda. Leitura sistemática de autores complexos deve ser coisa de gente paranóica, insatisfeita com o mundo, incapaz de gozar os prazeres da vida.

Serei zen, navegarei nas águas tranquilas da educação sem exigências. Adotarei a pedagogia “paz e amor”. Afinal, dizem que as coisas fluem por si mesmas, por geração espontânea. E os alunos? Que sejam autodidatas! Eles agora contam com uma rede mundial de informação. Basta um toque, um clique, um passar de olhos pela tela reluzente e sempre à mão. Se tudo é virtual, por que não os estudos? Chega de encher a paciência dos jovens com circunspectos textos literários, filosóficos e equivalentes!  Pedir-lhes o dispêndio de preciosas energias em análises e  interpretações, jamais!   “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, como canta o velho Caetano.

Quero o aplauso facilmente conquistado, o riso desbragado dos que se sentem aprovados em seus modos e ações. Mas para tanto há que se ter um plano. Ser bom ator é um começo. Fingir-me jovem entre jovens, adotar suas gírias, malandragens e jogos de cintura. Esquecer palavras rebuscadas. Numa palavra, simplificar. Aprender a nivelar-me até o “rés do chão”.

Em preparação a esta nova performance, cuidarei de substituir os temas antiquados que versam sobre artes, cinema, música, literatura, psicologia, filosofia, sociologia, antropologia... Chega! Vejam como estou progredindo na modernização dos meus caracteres pessoais. Começo  a sentir embrulho no estômago ao mencionar as arcaicas áreas do conhecimento universal. Quero ser contemporâneo, estar em sintonia com o momento. Preciso acompanhar o que rola na tevê, no youtube, na coluna social eletrônica. Conectar-me pelo MSN, Facebook, Orkut, Google + e derivados. Estar antenado com as últimas do pedaço é a condição, tá ligado? Apresentar nas redes sociais um perfil limpo, jovial, com cara de bom camarada, eis a política pessoal que agora está valendo.     

Mas conquistar a simpatia e a admiração de jovens que vivem em frenética corrida pode custar muito esforço e dedicação. Eles sempre vão exigir mais e mais e mais... Como me sair bem neste novo papel? Ora, lidar com as ferramentas que tenho à mão no âmbito da escola. 
Primeira tática, a mais sedutora: distribuir generosas notas levando em conta a simples participação na sala de aula. Escreveu qualquer coisa, fez perguntas (mesmo que desarrazoadas), teceu um comentário por raso que seja? É merecedor de aprovação. Demonstrou a boa vontade em participar. Não há um punhado de especialistas em educação afirmando que o importante é o debate, a presença, o respirar junto?

Segundo passo na construção do professor moderno que desejo ser: programar passeios culturais com meus alunos. Nada como convivência amigável e lazer compartilhado para aproximar pessoas, quebrar barreiras, fazer com que todos se sintam enturmados. Visitar lugares bonitos, cheios de cores e sons. Confraternizar será a regra. Se no meio da excursão educativa surgir tempo para uma praia, um barzinho, que mal haverá nisso? E nunca se esquecer de coroar experiência tão ilustrativa com boas notas para os aprendizes. Ao fim, constatarei, como muitos o fazem de forma benevolente: o fato de se estar com esses jovens traz ao professor a preciosa lição do “ser jovem”, do estar na “crista da onda”.
Terceira e última atitude: não forçar com conceitos e reflexões pesadas as mentes juvenis sensíveis. Isto pode causar traumas. Elogiá-los sempre, censurá-los jamais. Saber que estão em fase de aprendizagem, ainda descobrindo as coisas da vida. Qualquer uso de pedagogia crítica pode levá-los à descrença em suas habilidades cognitivas, ao desânimo e à derrota. Importante é acariciar seus egos tão carentes de atenção e cuidados. A proliferação dos livros de autoajuda não é casual; veio dar suporte aos reciclados educadores de hoje. Alguém duvida da eficácia desses autores que oferecem aos jovens pílulas de otimismo e de autoestima superior?

Nota: Certamente conquistarei aplausos frenéticos de burocratas da educação, preocupados sobremaneira com os índices de aprovação escolar. Na sociedade do espetáculo, de fato, o marketing é tudo.   

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 Mergulhado nesses pensamentos de reinvenção deste arcaico docente, de repente, acordei. Levantei da rede na varanda. Sonhara ou tivera um pesadelo?
Atônito, olhei em volta. Lá estava minha biblioteca com os velhos rostos conhecidos: Aristóteles, Agostinho, Dante, Maquiavel, Hobbes, Erasmo, Rousseau, Voltaire, Diderot, Kant, Nietzsche, Marx, Freud, Weber, Fromm, Garaudy, Foucault... Dedos em riste, esses homens pareciam olhar-me com censura – debruçados que estavam sobre séculos de sabedoria. Busquei conforto em autores menos sisudos: Shakespeare, Rabelais, Cervantes, Flaubert, Dumas, Hugo, Tolstói, Machado, Eça, Balzac, Roth, McEwan, Auster, Garcia Marquez, Pessoa, Graciliano, Neruda... Não adiantou. Senti-me igualmente reprovado por eles.
Naquele instante, mergulhei em cruel dilema: manter-me  fiel aos mestres da suspeita e da razão ou conquistar a alegria bovina dos que vivem a vida de forma rasa? Adotar o cinismo pedagógico do professor amigo ou permanecer na órbita dos clássicos que problematizaram a existência dos homens?
Como trocar o querido Dostoiévski  – amor de uma vida inteira – por um texto qualquer da linha da autoajuda hoje em voga?  
O dilema persiste.

Por: Eraldo Galindo da Silva
Filósofo e Teólogo 

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